Em um país com mais de 500 faculdades de Medicina Veterinária e um corpo técnico reconhecido internacionalmente pela excelência científica, a pergunta que emerge é desconfortável: por que o Brasil demorou tanto a construir uma política pública federal de guarda responsável de caninos e felinos domésticos?

A resposta, segundo a médica-veterinária Evelynne Marques de Melo, doutoranda no Programa Sociedade, Tecnologias e Políticas Públicas (SOTEPP/UNIMAL-AL) e mestre em Ciência Animal pela UFAL, exige revisitar o passado e compreender o contexto político e social que moldou o país.
“O conceito de guarda responsável se consolidou internacionalmente a partir da década de 1950, enquanto o Brasil teve seu marco histórico em 2001. Essa diferença temporal reflete o lugar que o Estado e a sociedade atribuíram à relação homem-animal”, explica Evelynne.
No período onde se consolidava a guarda responsável internacionalmente, o país vivia os governos de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, marcados por debates intensos sobre industrialização, desenvolvimento e papel do Estado na economia — mas sem qualquer estrutura de política animal.
“O foco nacional era outro: a construção de um país moderno, com uma classe média urbana em ascensão e avanços na comunicação. O olhar sobre a questão animal ainda era muito distante da agenda pública”, contextualiza.
Enquanto o Brasil avançava lentamente, o cenário internacional já se transformava. Na Europa, onde as escolas de Medicina Veterinária datam do século XVIII, políticas de controle populacional e saúde pública foram sendo aprimoradas com base em métodos integrados de prevenção de zoonoses, especialmente da raiva urbana.
“Foi a compreensão do impacto zoossanitário dos cães nos centros urbanos que levou governos a legislar sobre posse e criação responsável. Já nos anos 1990, havia países que atualizavam suas normas, incluindo castração, programas de guarda responsável e reconhecimento dos animais comunitários”, afirma a pesquisadora.
No Brasil, no entanto, o avanço técnico e científico não encontrou equivalência na gestão pública.
“Temos um corpo veterinário altamente qualificado, mas o Estado demorou a enxergar a importância de integrar ciência e decisão política. Isso gerou um custo social altíssimo, traduzido em desequilíbrio sanitário, aumento de zoonoses e sofrimento animal”, aponta Evelynne.
Entre o marco histórico (a consolidação do conceito) e o marco regulatório (as primeiras leis específicas), o país acumulou décadas de atraso.
Embora a vacinação antirrábica tenha se mantido como política permanente, o Brasil ainda convive com cerca de 60 zoonoses potencialmente transmitidas por cães e gatos.
“A guarda responsável é uma ferramenta de saúde pública. Não se trata apenas de bem-estar animal, mas de uma questão civilizatória que envolve controle epidemiológico, educação e responsabilidade social”, completa a especialista.


